Comentários à Lei 12.971/2014, que alterou o Código de Trânsito Brasileiro
terça-feira, 13 de maio de 2014
Olá amigos do Dizer o Direito,
Foi publicada, no dia de ontem, a Lei n.° 12.971/2014, que altera onze artigos do Código de Trânsito Brasileiro (Lei n.° 9.503/97).
Vamos conhecer um pouco mais sobre a alteração legislativa:
1. NOÇÕES PRELIMINARES
O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que é a Lei n.° 9.503/97.
O CTB prevê, dentre outras disposições, infrações de natureza administrativa (infrações de trânsito) e infrações de natureza penal (crimes de trânsito).
Infração de trânsito é a inobservância dos preceitos administrativos de regulação do trânsito previstos no CTB, na legislação complementar ou em resoluções do CONTRAN, sendo o infrator sujeito a penalidades e medidas administrativas.
Ex: deixar o condutor ou passageiro de usar o cinto de segurança. Trata-se de infração grave, estando o condutor sujeito à penalidade de multa e à medida administrativa de retenção do veículo até colocação do cinto (art. 167 do CTB).
Pode acontecer também de a infração de trânsito ser também uma infração penal.
Ex: dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. Trata-se de infração de trânsito gravíssima que sujeita o infrator a multa e suspensão do direito de dirigir por 12 meses. Haverá também o recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo (art. 165 do CTB).
Além disso, o ato de conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência também é considerada crime, cuja pena é de detenção, de 6 meses a 3 anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor (art. 306 do CTB).
A Lei n.° 12.971/2014 pode ser dividida em duas partes:
• Na primeira delas, altera seis infrações de trânsito;
• Na segunda parte, modifica alguns artigos que tratam sobre crimes previstos no CTB.
2. ALTERAÇÕES NAS INFRAÇÕES DE TRÂNSITO
A Lei n.° 12.971/2014 aumentou a penalidade de multa que deverá ser paga pelo condutor que cometer as seguintes infrações de trânsito:
• Disputar corrida (art. 173);
• Promover ou participar de competição de perícia em manobra de veículo sem permissão (art. 174);
• Utilizar de veículo para demonstrar manobra perigosa (art. 175);
• Forçar passagem entre veículos que transitam em sentidos opostos (art. 191);
• Ultrapassar outro veículo em locais impróprios (art. 202);
• Ultrapassar outro veículo pela contramão em locais impróprios (art. 203).
3. ALTERAÇÃO NO CRIME DE HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO (ART. 302)
O crime de homicídio culposo no trânsito é previsto no art. 302 do CTB. Na redação original, o art. 302 possui apenas o caput e um parágrafo único.
A Lei n.° 12.971/2014 transformou (renumerou) o antigo parágrafo único em § 1º e acrescentou um § 2º ao art. 302, com a seguinte redação:
Art. 302 (…)
(…)
§ 2º Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:
Penas – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
A inserção dessa qualificadora do § 2º é um grave equívoco e deveria ter sido vetada pela Presidente da República.
A redação utilizada pelo dispositivo foi péssima porque se esquece de mencionar novamente o resultado morte. No entanto, ao fazermos uma interpretação em conjunto e subordinada ao caput do art. 302, podemos concluir que esse § 2º queria dizer é o seguinte:
– Se o agente pratica homicídio culposo na direção de veículo automotor estando com a capacidade psicomotora alterada em razão de álcool ou outra droga; ou
– se o agente pratica hom
icídio culposo na direção de veículo automotor enquanto participa de “racha” ou exibição de perícia em manobra,
– será punido com reclusão de 2 a 4 anos e suspensão ou proibição de obter a permissão ou habilitação para dirigir.
Veja agora quais são os problemas gerados pelo equivocado § 2º:
1º Problema
Se o agente pratica homicídio culposo na direção de veículo automotor estando com a capacidade psicomotora alterada em razão de álcool ou outra droga, ele já é punido pelo caput do art. 302, que tem a mesma pena de 2 a 4 anos.
A única diferença existente é que o caput fala que a punição se dá com detenção e esse novo § 2º prevê a pena de reclusão.
Na prática, contudo, isso não trará qualquer incremento na punição do condutor homicida.
Segundo o art. 33 do Código Penal, a única diferença entre o crime punido com reclusão em relação ao delito apenado com detenção é a fixação do regime inicial de cumprimento de pena:
• Crime punido com reclusão: a pena poderá ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto.
• Crime punido com detenção: a pena poderá ser cumprida em regime semiaberto ou aberto.
Ocorre que essa distinção não trará qualquer efeito prático em relação ao crime de homicídio culposo com condutor sob a influência de álcool/droga. Isso porque a pena máxima prevista no § 2º do art. 302 continua sendo de 4 anos.
Sendo a pena máxima de até 4 anos, o condutor bêbado que atropelar e matar alguém continuará sendo, em regra, condenado ao regime inicial aberto, não importando se o crime agora é punido com reclusão ou detenção. Isso porque assim determina o art. 33, § 2º, “c”, do CP. A única hipótese de ser condenado a outro regime que não o aberto é no caso de ele ser reincidente, o que é bastante raro em crimes de trânsito, considerando que é um tipo de criminalidade episódica na vida da pessoa.
Ademais, sendo a pena máxima de 4 anos, na quase totalidade dos casos o réu terá que cumprir uma pena restritiva de direitos (art. 44 do CP) e não uma sanção privativa de liberdade.
Logo, nesse ponto, o § 2º foi desnecessário e não trará um aumento na punição do condutor que causa homicídio por estar sob a influência de álcool ou outras drogas. Ainda que seja condenado, esse agente não cumprirá a pena preso.
2º Problema
Se o agente pratica homicídio culposo na direção de veículo automotor enquanto participa de “racha”, a própria Lei n.° 12.971/2014 previu que ele deveria ser punido na forma do § 2º do art. 308 do CTB, que tem pena de 5 a 10 anos.
Desse modo, quanto a isso, a Lei n.° 12.971/2014 gera uma antinomia, uma contradição em si:
• § 2º do art. 302 afirma que condutor que participa de “racha” e causa morte de forma culposa responde a pena de 2 a 4 anos;
• § 2º do art. 308 afirma que condutor que participa de “racha” e causa morte de forma culposa responde a pena de 5 a 10 anos
Diante dessa perplexidade, o melhor seria que o § 2º do art. 302 fosse revogado durante a vacatio legis.
Diante dessa remota possibilidade, quando entrar em vigor o § 2º do art. 302 do CTB, surgirão duas interpretações possíveis:
1) Deve-se aplicar a interpretação mais favorável ao réu, de forma que, em caso de homicídio culposo na direção de veículo automotor enquanto o condutor participava de “racha”, ele será punido na forma do §2º do art. 302 do CTB (pena mais branda) e o § 2º do art. 308 do CTB (pena mais alta) será “letra morta”.