Inovações tecnológicas no setor de transporte não podem ser salvo-conduto para ignorar ordenamento jurídico
Artigo JOTA
As mudanças e avanços tecnológicos trazem todos os dias novas comodidades, mas geram desafios na mesma velocidade. Um desses desafios é desconstruir a ideia preestabelecida de que a tecnologia é um bem em si mesmo e aqueles que pretendem debater seus limites e impor-lhe regras são retrógrados e contrários à inovação. No caso do transporte coletivo de passageiros, os defensores do autodenominado “fretamento colaborativo” abusam de argumentos inverossímeis para sustentar seu negócio.
O debate ganhou novos contornos após o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a quem compete uniformizar a interpretação das leis infraconstitucionais, ter julgado o Recurso Especial 2.093.778/PR no último dia 18 de junho, mantendo decisão do TRF4 que considerou irregular o transporte ofertado por plataformas.
Na decisão do STJ foi apontado que “o modelo de fretamento colaborativo implica, na realidade, a prestação irregular de serviço de transporte rodoviário de passageiros”.
Nesse contexto, deve-se recordar que o transporte público coletivo é prestado diretamente pelo ente público ou por particular, mediante concessão ou permissão do Estado. O regime jurídico do serviço público de transporte, que é o conjunto de leis e normas técnicas que regulam a atividade em questão, pressupõe regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
A organização do serviço (itinerários, tipo de veículo, periodicidade etc.) e o preço cobrado do usuário não são definidos pela empresa prestadora, mas pelo titular da atividade, ou seja, o próprio ente público.
Desse modo, as empresas prestadoras do serviço regular não têm e nunca tiveram qualquer monopólio de atividade, que é exclusivo da União, estados e municípios. O monopólio, em termos econômicos, está ligado à concentração por pessoa ou grupo de pessoas de determinada atividade ou produto para, assim, ter pleno controle do preço. O serviço público de transporte é de titularidade do Estado, que fixa o preço da passagem.
O transporte privado coletivo (fretamento) é atividade econômica em sentido estrito, livre à iniciativa privada, mas sujeita à autorização e regulação estatal. A relação entre o usuário do transporte privado coletivo (fretamento) e o prestador é de Direito Privado, regida pelo Código Civil, Código do Consumidor etc. Mas isso sem prejuízo das regras regulamentares estabelecidas pelos entes públicos (União, estados e municípios) dentro dos limites de suas respectivas competências: fretamento interestadual, intermunicipal e municipal.
A regulamentação específica pelos entes públicos do transporte de passageiros se dá pelas características constitucionais do serviço: o transporte coletivo é serviço público e direito social, cujo sistema deve ser organizado e pensado para manter os citados princípios de regularidade, continuidade, eficiência, pontualidade e previsibilidade.
Paralelamente, a regulação do transporte privado coletivo (fretamento) é necessária, dentre outras razões, para evitar a concorrência entre um serviço público, com preço fixado pelo ente público, e uma atividade privada (fretamento) que atua em regime de liberdade de preço.
O transporte privado coletivo não pode ser prestado nos moldes do transporte público, com oferta aberta ao público em geral e cobrança individualizada de passagem. Essas práticas caracterizam a concorrência desleal e ruinosa ressaltada na decisão do STJ, uma vez que o regime de transporte público é planejado como um sistema composto tanto de ligações superavitárias quanto deficitárias.
O transporte público regular recolhe tributos, concede benefícios tarifários, mantém regularidade e universalidade no serviço, cobrando preço definido pelo ente público. O modelo de “fretamento colaborativo” não garante a pontualidade, segurança e frequência necessárias à prestação de um serviço público. Atrasos frequentes e cancelamento de viagens por baixa ocupação dos ônibus são comuns no modelo de negócio de empresas de tecnologia, que vendem passagens para viagens em ônibus fretados de maneira irregular.
Se o fretamento é explorado como serviço de transporte público, ou seja, com ligações ou linhas constantes, aberto ao público e com venda individualizada de passagem, desnatura-se a atividade e se instaura concorrência desleal e ruinosa com o transporte público. Em curto prazo, o prejudicado será o passageiro, que verá a degradação do sistema regular e o aumento de preço do fretamento que se explorará apenas as linhas rentáveis.
Lembremos as plásticas palavras do administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello: “Em primeiro lugar, é absurdo falar-se em interesse público à margem da lei. Por definição, o que não aparece como legal é um malefício, e não um interesse público”.
O modelo de fretamento colaborativo, como julgado pelo STJ, é ilegal, ou seja, é um malefício que somente interessa a quem o explora. É de se imaginar o que poderia acontecer se uma empresa de tecnologia começasse a vender passagens aéreas entre São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília em aviões privados, que decolassem e aterrissassem em pistas clandestinas ou improvisadas, como acontece com os ônibus de empresas do autointitulado “fretamento colaborativo”.
Rodrigo Matheus é advogado, mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, membro das comissões de Direito Administrativo e de Estudos de Infraestrutura do IASP e consultor jurídico do Setpesp (Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado de São Paulo)