Marcos Bicalho dos Santos*
O transporte público urbano foi duramente afetado pela pandemia do coronavírus em qualquer parte do mundo. Em todos os países que foram castigados pela doença houve a necessidade da implantação de medidas de distanciamento social, em maior ou menor grau, que implicaram redução ou mesmo paralisação de diversas atividades urbanas, o que refletiu diretamente sobre a necessidade de deslocamento nas cidades gerando, como consequência, o desequilíbrio econômico-financeiro dos sistemas de transporte público em operação, diante do descompasso entre a oferta e a demanda dos serviços.
Mundo a fora, a maioria dos gestores públicos decidiu pela manutenção da oferta total dos serviços, mesmo com a redução significativa da demanda, como forma de aumentar a segurança sanitária no ambiente dos transportes coletivos, mesmo que essa decisão implicasse no aporte extra de mais recursos financeiros para compensar a queda das receitas tarifárias e a manutenção do nível de serviço.
Mesmo em países onde o transporte público coletivo não é o mais importante na matriz modal de deslocamentos motorizados urbanos, como é o caso dos Estados Unidos da América, observou-se, desde o começo da pandemia, uma série de ações do governo central daquele país no sentido de manter os serviços de trens e ônibus urbanos funcionando normalmente.
Ainda em março de 2020, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei de Ajuda, Socorro e Segurança Econômica do Coronavírus (CARES) que destinou U$ 25 bilhões para o custeio dos transportes públicos. Em dezembro do mesmo ano, as dotações para esse setor foram complementadas em mais U$ 14 bilhões pela Lei de Apropriações Suplementares de Resposta e Socorro ao Coronavírus (CRRSAA).
Já em 2021, agora na administração Biden, foi sancionada a Lei do Plano de Resgate Americano que, só para os transportes públicos das áreas urbanas, destinou mais de U$ 26 bilhões. Essa nova lei, além de focar o transporte público, abrange uma ampla gama de assistência financeira de longo prazo a trabalhadores, empresas, escolas, comércio, enfim, tudo que é essencial para o renascimento da economia americana no pós-covid.
Com esse apoio, o setor de transporte público americano, envolvendo todos os seus agentes, já iniciou seu planejamento para entregar a sociedade daquele país, em um mundo pós-pandêmico, uma nova mobilidade que vai garantir o acesso às oportunidades e melhor qualidade de vida para todos.
Enquanto isso, no Brasil, onde o transporte coletivo divide com o transporte motorizado individual o primeiro lugar na matriz de distribuição modal de viagens urbanas, a situação é bem diferente.
Em maio de 2020, o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar nº 179/2020 que estabeleceu o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus adotando uma série de medidas para aliviar as dívidas de estados e municípios com a União, além de destinar um auxílio financeiro aos entes subnacionais no valor total de R$ 60 bilhões, dos quais apenas uma parcela de R$ 10 bilhões teve sua destinação carimbada para aplicação nas áreas de saúde e assistência social.
Apesar dos esforços dos agentes setoriais do transporte público urbano no sentido de destacar um aporte especifico para o setor, não houve êxito. Venceu a tese de total liberdade para aplicação dos recursos pelos estados, Distrito Federal e municípios, o que inviabilizou um socorro efetivo para essa atividade essencial naquele momento.
O setor continuou sua mobilização no sentido de convencer as autoridades federais brasileiras sobre a importância de uma ajuda emergencial para garantir a continuidade dos serviços. Com a participação do Ministério da Economia, conseguiu avançar em uma proposta legislativa específica para o transporte público urbano, consubstanciada no Projeto de Lei nº 3.664/2020, que foi finalmente aprovado pelo Congresso Nacional em 18/11/2020, mas, para decepção geral, foi vetado na íntegra pelo Presidente da República, em 10/12/2020 e teve o veto confirmado pelo Congresso Nacional em 17/03/2021.
Sem contar com qualquer apoio federal específico, a maioria das empresas brasileiras operadoras privadas de ônibus, trens e metrôs, sofrem a agonia da descapitalização e do aumento das dívidas, enquanto correm atrás dos estados e municípios, detentores das concessões, na busca do reequilíbrio dos contratos e de qualquer medida que possa ser uma tábua de salvação.
É a triste realidade de um país que, desde o início da pandemia, convive com a falta de liderança e de coordenação nacional que dificulta uma visão ampliada, contemplando todo o Brasil, sobre a real dimensão dos problemas criados pela pandemia em setores essenciais.
Infelizmente, sobre o transporte coletivo urbano pairou essa visão míope e limitada que, ao não reconhecer a característica de serviço público essencial, gerou prejuízos e retrocessos que levarão anos para serem recuperados. Se é que serão.
*Marcos Bicalho dos Santos é engenheiro civil, M.Sc. em Engenharia de Transportes e diretor da NTU – Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos